CanibaliAfetiva  


english

Antropófagos , cronópios e canibais

"A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna."
"Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade do ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipejú."
"ai, que preguiça"

Êxtases, sensações. A arte brasileira dá seu grito de guerra: CanibáliAfetiva, reunindo notáveis herdeiros de Oswald e Tarsila, Villa e Brecheret. Para equilibrar em voracidade com os canibais que chegam de longe, nossa afetiva Canibália.

Interessa-nos da Antropofagia que ela é clara em seus princípios e válida para os anos 20, enquanto que a CanibáliAfetiva é a movimentação cruzando a marca do milênio. Em comum, um apetite voraz em devorar a inteligência e os fluídos do escolhido para renascer como animal redivivo.

Lembro dos cronópios de Cortázar, tão diferentes das famas, quando trato de nossos gentis canibais, aliás, doze eternos canibais e dois cronópios.

Se "a alegria é a prova dos nove", como observou o poeta Oswald em seu manifesto, "a folia inteligente" é o lema para nossas diversões curatoriais, bem mais alinhadas do que as oficiais. Se é para dar dentadas, que sejam dadas na burocrática e insensível busca de sinais do que é no que não tem, expressão forte nesta XXIVa. Bienal.

Ao buscar as origens do Movimento Antropófago, passando pelos Manifeste Caniballe Dadaísta e pela História dos Canibalismos, constata-se que "ser humano é ser antropófago". O canibalismo entrou para a semântica por conta dos sucessos arqueológicos, etnológicos, a voga do primitivismo e da arte africana no começo do século. Sucede, em alguns anos, a revista francesa Cannibale e o Manifeste Cannibale Dada, de Francis Picabia, ambos de 1920.

Em conteúdo, a Antropofagia brasileira leva vantagem com seu ideário programático. Em A Crise da Filosofia Messiânica, o próprio Oswald distingue a antropofagia ritual do mero canibalismo .

Já a CanibáliAfetiva tem uma utopia a mais, que é a de agregar artistas e pensadores afinados entre si pela interdevoração afetiva e cultural. E é isso, não interessam ginásticas mentais reprimidas ou repressoras, interessa-nos o prazer geral através da arte.

No caldeirão de culturas que o Brasil representa pode-se incluir um vasto número de criadores que continuam canibalizando para garantir a manutenção de nossa cultura. Questão de sobrevivência.

"Tupi or not tupi, that is the question. Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente." Da Bossa Nova à Tropicália, ao Cinema Novo e o Teatro Oficina, tem nascido - em vários sentidos - braços e mentes deste processo canibalizante em nossa cultura.

CanibáliAfetiva apresenta alguns dos mais importantes artistas brasileiros. Eles destacam-se, ao menos em alguns momentos de suas trajetórias, como verdadeiros herdeiros da Antropofagia: Antonio Henrique Amaral, Antonio Peticov, Artur Alípio Barrio, Caito, Ivald Granato, Maria Martins, Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Siron Franco, Hélio Oiticica, Franz Krajcberg.

A absoluta maioria deles não participa da Bienal da Antropofagia. Um lapso histórico ou apenas uma amnésia? Os artistas aqui reunidos, em alguns momentos de seus percursos vinculados ao ideal antropofágico, são os autênticos canibalafetivos, cada qual à sua maneira continuando o pensamento oswaldiano embutido no coração das Vanguardas. Anarco-apaixonados do terceiro milênio, gênios da raça, como diria Glauber Rocha. Outros haverão, mas ficamos felizes com esta seleção quase impossível.

Sedutores por sua estética devoradora, multintegências, estes artistas representam a diversidade da arte nacional, que poderia ser pensada e permeada pela questão proposta pela XXIVa. Em muitos deles não deixamos de notar densidades - épaisseur, segundo Lyotard -, que preenchem lacunas maiores que as aparentemente visíveis. Neste jardim de delícias, o paradigma da hora lançado das nuvens: ser ou não ser canibal, eis a questão.

Piratininga, ano 444 da Deglutição do Bispo Sardinha.

Paulo Klein
Crítico de Arte
APCA/ ABCA/AICA

Referências:
Oswald de Andrade, Manifesto da poesia pau-brasil, 1924.
Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago, 1928.
Mário de Andrade, Macunaíma?
Augusto Campos - 50 Anos da Revista Antropofágica Metal Leve/ 1972
Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago, 1928.
F. Lyotard, Anais da XXIV Bienal Internacional de São Paulo.

Volta

Texto do Curador   Livro de Visitas   Créditos   English